Um cineasta com olhar de menino

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Foto: Divulgação

“Um açougueiro que ganhou o mundo do cinema”, seria uma forma clichê de descrevê-lo. Ou quando provocado: “bom de corte!”

Por Sheila Fonseca

Ricardo Rodrigues ri, bem-humorado. O fato é que, o açougueiro de profissão e aficionado por leitura desde a infância, é essencialmente um contador de histórias. E dos bons.

Mas conversando com a figura de fala mansa, uma infinidade de memórias e sensibilidade apurada, podemos notar a presença do menino que cresceu com a curiosidade de entender as suas próprias reminiscências e o mundo à sua volta.

Filho de imigrantes portugueses, Rodrigues cresceu atrás do balcão do açougue do seu pai, que quando chegou ao Brasil trabalhou como tripeiro.

Vendedor ambulante de tripas e miúdos, profissão antiga e muito comum em Portugal – nas ruas de São João de Meriti, cidade da Região Metropolitana Fluminense, até montar seu próprio açougue, negócio que está na família até hoje.

Com olhar atento, por detrás do balcão, o menino que se acostumou cedo à observar a rotina de trabalho viu no açougue também um espaço para se conhecer e conectar às pessoas: “Carne é alimento e alimento é vida. Ali foi um lugar em que pude valorizar o contato humano e começar a ter noção das desigualdades. Se alimentar é fundamental à subsistência. E nem todo mundo pode comer carne.”, reflete.

Na visão de Rodrigues, seu pai é essencialmente um artista, assim como outros imigrantes que fazem do trabalho manual sua arte:

“Carpinteiros, serralheiros, açougueiros, imigrantes vem de Portugal e de outros lugares, de todo o mundo, majoritariamente exercendo profissões antigas. São trabalhadores braçais que fazem disso uma forma de arte”, diz Ricardo, que afirma também se considerar um artista enquanto trabalha como açougueiro: “ A peça de carne é como um diamante bruto, você vai dividindo ela, cortando, dando sensibilidade através do corte, transformando. Há uma certa beleza nisso. E tem o exercício de escuta atrás do balcão. É um ótimo lugar para se compreender como funcionam as pessoas e a vida.”, completa.

Esse olhar e a paixão pela escrita, que veio ainda antes do cinema, aproximaram Ricardo Rodrigues do movimento do Cinema de Guerrilha, gênero considerado herdeiro do Cinema Novo.

A infância e o acaso foram o grande laboratório

A criança sensível que cresceu com as histórias sobre a trajetória da família de imigrantes, onde seu pai começou vendendo tripas nas ruas da ainda semi-rural São João de Meriti, em meados da década de 1950, precisou desenvolver um mundo interior rico para aplacar a timidez. Foi quando Ricardo Rodrigues conheceu a escrita como ferramenta de desenvolvimento lúdico e contato com o mundo.

“A verdade é que eu sempre gostei de escrever desde muito cedo. Fui uma criança muito solitária e bastante tímida. E eu buscava obter ferramentas intuitivamente pra lidar com isso. Então, na infância eu já comecei a escrever as primeiras histórias.

Eu creio que esse temperamento fez com que eu desenvolvesse cedo uma necessidade de desabafar, de contar histórias pra mim mesmo e também pra me comunicar com o mundo à volta. A escrita foi a minha primeira ferramenta pessoal mesmo.” reflete.

Seguindo este desejo cursou oficinas de teatro e escrita em diversos formatos, com expoentes como Walcyr Carrasco, dentre outros, onde elaborou sua técnica.

E aliando o talento ao repertório técnico, o acaso ou os deuses do cinema deram a “mãozinha” com a oportunidade: Rodrigues recebeu o inusitado convite de escrever para política.

“Era redação publicitária com foco em assessoria de imprensa política, basicamente, para políticos daqui de São João de Meriti. Foi uma experiência meio louca e não muito prazerosa…”, diz entre risos. “Mas sou grato, pois foi o começo de tudo.”

“Na redação publicitária de política precisa mentir muito. Não gostei. Pra mim, mentira só na ficção.” – Ricardo Rodrigues

Na avaliação do cineasta, o seu caminho de vida foi traçado através do estudo, da abertura de coração às possibilidades e do “sim” ao que surgia, ao que o destino o presenteava.

O começo

A incursão não planejada ramo da publicidade política possibilitou a reabilitação de um velho sonho: Levar adiante a filmagem do seu primeiro roteiro para cinema.

“Foi muito por acaso. Costumo dizer que tudo o que deu de certo na minha vida se deu porque foi distinto dos meus planos… Fiquei amigo do pessoal da produtora e mostrando meus roteiros consegui a parceria que precisava.”, conta. Desta primeira incursão no cinema, surge o curta-metragem O Mendigo: “Esse foi Cinema de Guerrilha mesmo, feito na raça…

Rodamos com R$3.000. E tem uma importância especial para mim, porque além de trabalhar nele como ator dada à falta de recursos, o que foi inusitado, narra muito da minha experiência atrás do balcão do açougue. O roteiro surgiu de uma história real. Um dia entrou em meu açougue um senhor em situação de rua querendo comprar dois bifes. E uma cliente pediu que o retirássemos… O que, lógico, jamais faria. Na vida real ele foi atendido com a maior dignidade, como sempre fiz questão de proceder. A questão humana da exclusão fica muito presente quando se trabalha no setor de alimentação, acredito que mais do que qualquer outro comércio.

A desigualdade fica muito óbvia. E eu busco trazer essas inquietações para os meus filmes”. conceitua o cineasta.

E a Baixada fez Boom!

O Mendigo estourou trazendo ao cineasta visibilidade, com participações em festivais internacionais e entrevistas na grande imprensa. Em 2012, Ricardo participou do Programa do Jô, com enorme sucesso. Analisando as mudanças ocorridas na cena cultural fora da capital desde o seu começo, o cineasta aponta crescimento:

“A Baixada explodiu… agora possuímos uma cena vibrante, rica, plural. produções fervilhando, literatura, cinema, música. Fico muito feliz em ver que fui uma pequena engrenagem nesta mudança.”

De lá para cá, Ricardo Rodrigues filmou como diretor e roteirista dezenas de filmes, participou de festivais de cinema em todo o mundo, ganhou prêmios, foi citado na biografia de Cacá Diegues, além de fundar e presidir por quatro anos a Academia de Letras e Artes de São João de Meriti.

Confirmando sua vocação à pluralidade, ligado em 220 volts, em 2019, Rodrigues lançou seu primeiro livro de contos pela Editora Patuá: “O Fim do Mundo Já Passou”. Em setembro de 2023, como escritor, Ricardo foi vencedor do prêmio do Festival de Poesia Inédita, promovido pela prefeitura de São Pedro, em São Paulo. Como dica, o cineastaautor-camaleão recomenda: “Abrace as oportunidades. Estude muito, para que quando estas oportunidades chegarem, você esteja preparado para elas. E se permita, não se limite.”

O CINEMA DE RICARDO RODRIGUES

Separamos alguns destaques na obra de Ricardo Rodrigues. Os filmes selecionados dão dimensão da pluralidade do seu trabalho autoral inserido no cinema de guerrilha.

O Mendigo

No seu filme de estreia, Ricardo traz na construção do roteiro suas principais referências, tanto em termos de brasilidade como em estética e narrativa. O doce mendigo, elemento central do argumento, chama-se Oscarito em alusão ao mestre da comédia brasileira. Na trama, Rodrigues mostra à que veio como roteirista e diretor – e também ator! – tratando com sensibilidade e boa dose de ironia, como no caso do diálogo entre Oscarito e o rapaz “Jesus”, que lhe nega esmola, o tema da exclusão social, marca registrada do gênero Cinema de Guerrilha.

O Evangelista

No documentário O Evangelista, Rodrigues mostra ousadia, tanto na escolha da temática da religião e a disputa de territórios controversa que é a pregação em espaço público, quanto na incursão pelo – sempre desafiador – gênero documental, em que demonstra incomum desenvoltura. Seja nos enquadramentos e escolhas estéticas, nos recursos de corte, na construção do roteiro ou na trilha sonora gospel fina for do brega, assinada pelo pastor Renato Rodrigues, em estilo de que faz lembrar Waldick Soriano, O Evangelista traz a comovente história de um personagem anônimo que sintetiza uma legítima
declaração de amor à São João de Meriti.

Enterro de Anão

Na deliciosa comédia Enterro de Anão, o diretor constrói o roteiro em torno da lenda urbana de que “anões não morrem”. O tema é pano de fundo para o humor-negro ácido e personagens elaborados em cima de dramas humanos. O resultado é fantástico e pinça referências do melhor dos mestres do gênero, como Damián Szifron e Almodóvar, só que de baixo orçamento e no melhor perfil de guerrilha.

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